Das agruras de se escolher uma profissão desvalorizada socialmente (e dos privilégios invisíveis)

            Queridxs familiares e amigxs,

Obrigada por compartilharem comigo um momento de felicidade como este! Mas preciso pontuar uma coisa: a cada vez que vocês me dizem: “Parabéns!! Daqui a pouco você sobe mais ainda!” ou “Daqui a pouco você vem pra mais perto!”, indiretamente, vocês estão me dizendo que acham que eu estou no lugar errado; que eu deveria estar num lugar melhor, tanto do ponto de vista geográfico, quanto do profissional. Eu sei que a maioria de vocês diz isso porque, mesmo não sabendo o quanto eu ganho, imaginam (e imaginam certo) que não deve ser um salário de seis dígitos de um juíz. Nem mesmo um salário de cinco dígitos de um médico recém-formado. E que eu poderia ser juíza (e ter passado em Direito com a minha pontuação do vestibular). E que eu deveria ganhar mais e proporcionalmente à minha inteligência (seja lá o que isso for). Entendo que é uma atitude de carinho. Mas deixa eu contextualizar uma coisa pra vocês.

Fazer Letras (e não Direito) foi uma epifania do fim do Ensino Médio que deu certo. Muito certo. Fazer mestrado e doutorado enquanto uma parte pequena da minha turma já ganhava mais do que o suficiente para pagar as contas foi uma escolha de longo prazo. Que deu certo. Passar num concurso pra Adjunta no Nordeste logo depois de terminar a tese também foi um sonho que deu certo. O meu salário não chega a cinco dígitos. Mas é muito, muito maior do que o salário das minhas alunas que fazem especialização à noite ou à distância, após uma jornada de trabalho em, pelo menos, duas escolas, pagando um terço do salário delas do próprio bolso pra verem o seu salário aumentar 50 reais depois disso. Quando chegam em casa, elas ainda vão cuidar da casa e ensinar o dever prxs filhxs.

Brinco com elas que eu sou da “geração Toddy”: estudei no diurno, fiz as Iniciações Científicas que quis, viajei pra congressos com o dinheiro das minhas bolsas, porque nunca precisei me preocupar, durante a graduação, em como pagar as minhas contas. Pude viver de bolsa de mestrado e doutorado porque não tinha filhxs pra sustentar. Pude me dar ao luxo, desde o início do meu mestrado, de atuar em excelentes instituições,inclusive no Ensino Superior (o que, certamente, contribuiu muito para a minha aprovação no concurso). Então, pensem no quanto é ofensivo, não para mim, mas para a grande maioria da minha classe profissional, ouvir que “daqui a pouco, eu estarei ganhando mais”. Porque a grandessíssima parte das/dos minhas/meus colegas de profissão não têm o meu salário ou trabalham demais para ter. Porque eu não preciso de mais. Porque eu estou num esquema superprivilegiado de trabalho e não quero estar em outro lugar. Estou exatamente onde planejei estar há dez anos atrás.

E eu só estou nesse lugar devido aos imensos privilégios de classe média que eu sempre tive e vou continuar tendo. E não, nenhum de nós “só é feliz ganhando xx mil reais”. (Falem isso pra qualquer profissional da área de humanas e ganhem inteiramente grátis um sorriso constrangido ou uma gargalhada sarcástica.) E não, eu não me sinto, como em profissões mais privilegiadas socialmente, “escravizada pelo governo” (embora ache válidas manifestações para melhoria de condições de trabalho de professorxs universitárixs). Simplesmente porque não me sinto mesmo. E acho completamente descabida a comparação das minhas condições de trabalho às de escravos. Então eu te convido, junto comigo, a sair um pouco do próprio umbigo e reconhecer os privilégios que temos. É desconfortável, é dolorido, mas vale a pena. Bora?? 🙂

2 Comentários »

  1. Marina said

    Ainda bem que quando eu fiquei sabendo eu disse: “agora você pode relaxar e ser feliz”. É só isso que te desejo.

  2. Bruna said

    Bem, é muito coerente o seu raciocínio. Inclusive, eu parei para pensar nisso esses dias; pensei sobre os privilégios que me cercam. Não me vanglorio disso, como um discurso de classe, mas reconheço-os. Isso é imprescindível para que não tenhamos tanta autopiedade infundamentada. As nossas escolhas é que nos levam para onde queremos ir, ainda que sejamos condicionados por outros fatores diversos.

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